Proteção ideal do trabalhador envolve uma série de ações, da escolha correta do EPI à individualização do uso
A situação é muito comum no Brasil: a empresa identifica riscos à saúde auditiva de funcionários, faz a compra de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual) e os distribui, acreditando que isso já basta para proteger os colaboradores e cumprir a lei. Esses procedimentos, na verdade, são apenas uma pequena parte das ações que devem ser tomadas para a proteção ideal dos trabalhadores contra ruídos, afirmam três dos maiores especialistas da área no país.
Raul Casanova Junior, superintendente do ABNT CB-32 (Comitê Brasileiro de Equipamentos de Proteção Individual), Rafael Fernandes, coordenador da Comissão de Proteção Auditiva do ABNT CB-32, e Rafael Gerges, secretário da comissão, são unânimes ao falar que só um trabalho de longo prazo, previsto em um Programa de Conservação Auditiva, pode garantir a eficácia mais próxima da ideal para a proteção dos trabalhadores.
“Há diversas ações que contemplam o contexto de um programa, desde ações administrativas, de motivação, da própria seleção em si do protetor auditivo. Não basta só atenuar ruídos, é preciso escolher EPIs adequados aos riscos, às atividades e, principalmente, ao indivíduo”, afirma Rafael Fernandes, que também é engenheiro de aplicação da 3M. “Um EPI incômodo ou que não vede muito bem pode jogar todo o trabalho de segurança no lixo, além de causar perda auditiva ao trabalhador.”
Quais são as principais normas?
Quando o assunto são a exposição ao ruído e a perda auditiva ocupacional, duas normas se despontam no país: a Norma Regulamentadora NR 9, que dispõe sobre o PPRA (Programa de Prevenção de Riscos Ambientais), e a NR 7, que versa sobre o PCMSO (Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional).
A primeira estabelece ações preventivas que devem ser iniciadas quando a dose de exposição ao ruído ultrapassa o valor de 0,5 (ou 50%). Já a NR 7 prevê diretrizes e parâmetros mínimos para avaliação e acompanhamento de trabalhadores expostos a níveis de pressão sonora elevados.
Outras previsões legais importantes para o tema são a NR 15 (que regulamenta as atividades insalubres), a NR 6 (que aborda classificação os EPIs) e mesmo a Ordem de Serviço INSS/DAF/DSS 608/1998 (que exige a organização de um Programa de Conservação Auditiva para empresas que têm exposição de trabalhadores a níveis de pressão sonora elevados).
Detalhes dessas normas estão reunidos em um dos principais meios de consulta sobre o tema do país, o “Guia de Diretrizes e Parâmetros Mínimos para a Elaboração e a Gestão do Programa de Conservação Auditiva”, apelidado de Guia do PCA. O compêndio foi elaborado pela Fundacentro (Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho), órgão técnico vinculado à secretaria de Inspeção do Trabalho, do governo federal. O trabalho pode ser acessado clicando neste link.
Cenário no Brasil
Raul Casanova Junior, que também é diretor executivo da Animaseg (Associação Nacional da Indústria de Material de Segurança e Proteção do Trabalho) e da Abraseg (Associação Brasileira dos Distribuidores e Importadores de Equipamentos e Produtos de Segurança e Proteção ao Trabalho), diz que o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer na proteção auditiva do trabalhador.
Como exemplo, ele cita um levantamento feito pelas entidades que calculou o faturamento anual do mercado de proteção auditiva de 2019. Nos EUA+Canadá, o valor foi de US$ 443 milhões. No Brasil, US$ 24 milhões. As cifras foram comparadas com o número de trabalhadores ativos em cada região. “Na comparação, é possível concluir que, no Brasil, a utilização de protetores auditivos não passa de 20% do utilizado nos EUA e Canadá. Temos muito a avançar.”
Casanova Junior diz, porém, que a pandemia de coronavírus, por mais aspectos negativos que tenha causado à humanidade, acabou por elevar o nível de entendimento da sociedade em relação à importância da utilização de EPIs. “A pandemia vai trazer um reflexo positivo de conscientização das pessoas na segurança do trabalho. Nunca o tema EPI foi tão falado no mundo”, afirma.
Por onde começar?
Para detectar a necessidade de um EPI auditivo é preciso quantificar o risco do ruído em um ambiente de empresa, explica o engenheiro Rafael Gerges, diretor técnico do Laepi (único laboratório brasileiro acreditado pelo Inmetro e credenciado pela Secretaria Especial do Trabalho para realizar ensaios de atenuação de ruído de protetores auriculares).
Segundo ele, um engenheiro ou técnico de segurança, ou equipes de empresas terceirizadas, vão a campo com dosímetros, equipamentos pequenos que quantificam a exposição do trabalhador a ruído em determinado tempo. Os aparelhos são colocados nos ombros dos funcionários, geralmente separados por GHEs (Grupos Homogêneos de Exposição).
“Depois, é feita a comparação com os limites estabelecidos pelo Anexo 1 da NR-15, que descreve o quanto de exposição a ruído o indivíduo pode ter em função de sua jornada diária de trabalho”, explica Gerges. Com isso, é possível calcular quanto deve ser a atenuação de ruído mínima que cada trabalhador deve ter para sua segurança.
Ao saber quais níveis de atenuação de ruído são necessários para cada setor e grupo de colaboradores, a empresa passa a decidir quais protetores auditivos deverá adquirir.
Como é a certificação dos EPIs?
Quando um fabricante quer adquirir o CA (Certificado de Aprovação) de um protetor auditivo, o produto precisa passar por testes previstos em norma. O CA é um documento expedido pela Secretaria Especial do Trabalho que garante a funcionalidade, resistência e qualidade de um EPI.
No caso dos protetores auditivos, o teste é parecido a uma audiometria médica e busca simular o que acontece com o usuário em seu ambiente de trabalho, explica Rafael Gerges. “É um ensaio que utiliza pessoas, que entram individualmente em uma sala isolada, com níveis de ruído baixíssimos, com um botão de resposta na mão. Há estímulos sonoros e a pessoa responde se está ouvindo-os ou não, para detectarmos qual o mínimo de ruído. Depois, o mesmo teste é feito com o protetor auditivo colocado pela própria pessoa”, diz o especialista.
A diferença dos resultados entre um teste e outro, chamada de “deslocamento linear auditivo”, nada mais é do que o nível de atenuação de ruído que o protetor oferece. A partir daí, chegam-se às características técnicas de cada produto e são emitidos os CAs. Essas características serão consultadas pelas empresas e demais entidades na decisão de comprar os EPIs para seus trabalhadores.
Quais os tipos de protetores auditivos?
Rafael Fernandes explica que os protetores auditivos podem ser divididos em dois grandes grupos: os de inserção e os de concha. Os protetores de inserção, também chamados de plugs, são aqueles colocados no canal auditivo. Já os de concha assemelham-se a um fone de ouvido, com uma haste que faz pressão em torno da cabeça e almofadas em contato com as orelhas.
O material dentro de uma categoria também pode variar. Protetores de inserção podem ser feitos de espuma, material muito confortável e conformável ao canal auditivo (geralmente, para os descartáveis), e também de borracha ou silicone, geralmente pré-moldados (de diferentes tamanhos e fáceis de serem higienizados). Os de concha também podem ser feitos de diversos materiais, como espuma, borracha e plástico.
Qual o melhor?
Cuidado. É aqui que reside um dos conceitos mais importantes de proteção auditiva do trabalhador. Não há um protetor melhor que o outro por si só. O que existe é um protetor ideal para cada situação (que envolve um conjunto de fatores, como ambiente, nível de ruído, indivíduo…).
Um exemplo: o protetor ideal não é aquele que causa a maior atenuação possível de ruído. Imagine uma atividade que exija uma atenuação pequena de ruído e o trabalhador usa um protetor com grande atenuação. Para poder ouvir os colegas, ele tira o protetor constantemente, o que leva a danos ao seu aparelho auditivo a longo prazo.
Rafael Gerges dá outro exemplo: “em ambientes com muito calor e umidade, o protetor tipo concha vai ser desconfortável, porque a pressão na cabeça e a almofada de vedação, ao ser usado por horas seguidas, causa mais suor e desconforto. Neste caso, é melhor usar o plug”.
“Os mais variados tipos de protetores têm a intenção de oferecer opções de acordo com biotipos, características anatômicas, dos ambientes, das atividades executadas. De acordo com cada situação, os diferentes tipos de protetores vão ser mais ou menos vantajosos”, diz Rafael Fernandes.
A importância da individualização
Um tema que tem sido muito discutido em relação à segurança auditiva de trabalhadores é a individualização dos EPIs. Segundo os especialistas, isso não significa que a empresa tenha que fornecer equipamentos especificamente moldados para cada um de seus colaboradores.
“Muitas vezes, dependendo do perfil do canal auditivo, que pode ser muito tortuoso ou fino, o trabalhador não se adapta ao protetor de inserção”, afirma Fernandes. “Se a pessoa não fizer o uso adequado, ela não vai estar protegida. E a garantia do uso adequado não virá de uma seleção coletiva, nem de um treinamento coletivo, nem do simples recebimento do EPI, que, claro, são importantes. Mas envolve um contexto de programa e de individualização.”
“Já levando em consideração que os protetores auditivos estejam com a atenuação necessária, é preciso garantir que o trabalhador esteja usando o mais confortável, e aquele que consiga usar durante todo o tempo em que está exposto ao ruído”, completa Gerges.
Como fazer a manutenção dos equipamentos?
“Os fabricantes são, por lei, obrigados a apresentar, em seus manuais de uso, instruções sobre manutenção de EPIs”, afirma Fernandes. “O usuário tem que ter a ciência plena de como higienizar, identificar quando deve ser substituído, entre outros. E é responsabilidade do empregador transmitir isso para o colaborador.”
A higienização em si de protetores auditivos varia bastante. Geralmente, os fabricantes recomendam uso de água e sabão, e pedem para evitar álcool, solventes e demais materiais agressivos.
A vida útil do EPI pode variar bastante, também. E o ambiente tem grande influência sobre isso: basta imaginar um mesmo tipo de protetor usado em um escritório com ar condicionado e outro em um chão de fábrica com solventes, poeira e calor. Normalmente, para detectar que a vida útil chegou ao fim, é preciso ver coloração, elasticidade e maleabilidade do material, sempre comparando-o com um novo.
“O exemplo clássico é o protetor tipo concha. A haste que une as duas conchas tem que exercer certa pressão, que, junto com a maciez das almofadas, vai garantir a real proteção. Quando as almofadas começam a ficar gastas ou a haste, laceada, já há uma perda de proteção e é preciso solicitar a troca”, afirma Fernandes.
É preciso fazer exames médicos periódicos?
Quando há riscos relacionados à exposição de ruído, as normas trabalhistas exigem, da empresa, a disponibilização de exames médicos referentes à saúde auditiva do trabalhador na admissão, seis meses após a admissão, anualmente a partir daí, sempre que detectar possível risco ao colaborador e na demissão.
Os especialistas, porém, fazem um questionamento em relação à norma quando o tema é a audição. “A perda auditiva acontece depois de exposições acumuladas, dia após dia, após meses ou anos. Um exame audiométrico anual leva ao risco de uma perda auditiva ocorrida em meses”, pondera Rafael Fernandes. “E a perda auditiva não se recupera nunca mais.”
Para ele, por esse motivo, é fundamental que o exame médico, por mais importante que seja, não se torne o único acompanhamento do trabalhador. A solução, mais uma vez, passa por uma visão ampla e integrada, dentro de um projeto a longo prazo de proteção auditiva do trabalhador.
Limitações e eficácia
Casanova Junior lembra que o STF (Supremo Tribunal Federal) recentemente decidiu que, na hipótese de o trabalhador exposto a ruídos acima dos limites tolerados, a mera declaração de eficácia do EPI não descaracteriza o tempo de serviço especial para aposentadoria. “Não basta falar ‘eu dei o EPI’. É preciso seguir um programa de proteção auditiva adequado.”
“O protetor auditivo, assim como todo EPI ou qualquer equipamento do mundo, tem suas limitações. Mas, se esse EPI estiver de acordo com um Programa de Proteção Auditiva, se ele for utilizado adequadamente, de acordo com as normas e dentro de suas especificações, ele será eficaz”, conclui o especialista.
Fonte: Revista CIPA